A Alfândega do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII

23/07/2024

A publicação do livro Economia, fiscalidade e comércio: a Alfândega do Rio de Janeiro (ca.1750 – ca.1808), de Helena Cássia Trindade de Sá, representa uma inestimável contribuição à historiografia brasileira, tanto por suas conclusões, muito bem demonstradas, quanto pelas indicações a novas perspectivas de estudo. Resultado da Tese de Doutoramento defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde obteve aprovação com recomendação de publicação, o trabalho dá continuidade, com inovações significativas, à Dissertação de Mestrado (A Alfândega do Rio de Janeiro: da União Ibérica ao fim da guerra da Restauração (ca.1580-ca.1668)), defendida no mesmo PPGH, na qual a autora enfrentou o estudo da Alfândega no período das Monarquias Ibéricas e nas primeiras décadas após a Restauração – período histórico em que a disponibilidade de fontes é mais escassa – e refutou um quase lugar comum de que a Alfândega não teve funcionamento efetivo no período ou, pelo menos, não havia cobrança sistemática da Dízima antes do século XVIII. Nas palavras da autora, a Alfândega do Rio de Janeiro foi estudada “como uma instituição essencial para os interesses da Coroa”; muito além da sua função tributária, “como chave explicativa da relação dialética entre a metrópole e a colônia”. Nessa perspectiva, o estudo não se restringe ao ordenamento normativo, demonstrando a recorrência de práticas ilícitas e conflitos responsáveis por uma certa maleabilidade da aplicação das normas. Em outras palavras, mais do que a norma em si, elas são pensadas como uma realização social do direito, inseparável das relações sociais em que estavam inseridas. A obra é estruturada de forma bastante sistemática está dividida em 3 capítulos: o primeiro capítulo trata da posição do Rio de Janeiro no contexto do Império português na segunda metade do século XVIII, em meio a reformas das estruturas monárquicas e das transformações do que já se chamou de “Era das Revoluções”. Identifica “inflexões” que, no período, resultaram em algumas transformações na Alfândega, tanto no campo político, quanto no administrativo. Relaciona a estrutura e funcionamento da Alfândega ao conjunto das mudanças da administração fazendária, de caráter centralizador na administração e não na política – as Juntas –, anteriores aos desdobramentos da aplicação da legislação que estabeleceu o Erário Régio.

No capítulo dois é analisada a estrutura da administração fazendária no Rio de Janeiro, em particular da Alfândega, e seu funcionamento em meio às novas orientações do reformismo português. No último capítulo, de forma bastante inovadora, são estudados os “personagens” atuantes na Alfândega, reforçando uma dimensão pluricontinental das relações econômicas nas quais o Brasil estava inserido. A análise contempla um minucioso estudo institucional, desde seu ordenamento normativo, composição do quadro de oficiais e interessados nas suas atividades, discutindo a sua eficácia na aplicação das regras de controle do comércio da economia colonial de um modo geral, contraposta às práticas que adaptavam o seu funcionamento à realidade das atividades dos diversos personagens envolvidos e suas relações sociais. Avança ainda ao situar o funcionamento da administração alfandegária nos quadros do Império português no período, ultrapassando a dicotomia simplificadora de tratar a Alfândega como elemento central no funcionamento de um “sistema colonial” ou enredada na teia de relações sociais do espaço colonial, reproduzindo os interesses dos seus grupos constituintes. O estudo da agência administrativa e fiscal da monarquia está em linha com a historiografia recente, a partir da perspectiva do estudo da fiscalidade, inserida em complexas relações entre economia, política e sociedade, contemplando a análise da atuação dos diferentes agentes dentro das administrações central e periférica da monarquia. O copioso levantamento de dados empíricos não só apresenta valor em si mesmo, mas serve para fundamentar a argumentação da autora, em que as práticas fiscais são sempre mediadas pelos interesses e atitudes dos diferentes grupos sociais. Na perspectiva do estudo da fiscalidade, a autora segue a perspectiva já consolidada de autores como Perry Anderson, Le Roy Ladurie, Bartolomé Clavero e Pérez Siller, para ficar apenas em alguns exemplos que conferiram centralidade à fiscalidade como elemento da política de poder dos Estados modernos, desempenhando um papel central na sua efetivação. Coincide o recorte cronológico com a progressiva preponderância da fiscalidade régia, embora permaneçam suas variáveis concorrentes (régia, senhorial e eclesiástica), em uma conjuntura que combina a consolidação de práticas mercantilistas e o acirramento das contradições do modelo colonial da época moderna. Enquanto que, na abertura do estudo, a autora se identifica com uma perspectiva da historiografia – o “sentido”, de Caio Prado; o “sistema colonial”, de Fernando Novais –, ao longo do seu desenvolvimento, faz grande esforço de superar o apriorismo/determinismo na elaboração histórica, o que emerge no próprio processo explanatório, a partir de uma lógica situacional. É no desenvolvimento do próprio processo analítico, a partir das hipóteses propostas, que se consolidam as opções e os procedimentos metodológicos advindos da logicidade do objeto. Finalmente, cabe uma menção elogiosa ao PPGH-UNIRIO por promover com recursos CAPES/PROEX e FAPERJ a edição de Teses dos seus egressos, escolhidas em processo avaliativo por membros externos ao Programa, permitindo, assim, a circulação do conhecimento produzido e aprofundando o seu compromisso social com expressivo retorno à sociedade.

Marcos Guimarães Sanches
(Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Departamento de História – Programa de Pós-graduação em História)