Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência possível ao usuário. As informações sobre cookies são armazenadas no seu navegador e desempenham funções como reconhecê-lo quando você retornar ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você acha mais interessantes e úteis.
Cultura Reconsiderada: Entrevista com o Autor
23/05/2023A NAU Editora acaba de lançar o quarto volume da Coleção “Fenomenologia e Cultura”, que é uma coedição com a Editora da PUC-Rio e com a Editora Documenta, de Lisboa. Coordenada por André Barata, Fernando Gastal e Marcelo S. Norberto, a coleção tem como objetivo reunir trabalhos inéditos com abordagens fenomenológicas que enfrentem questões e desafios que nos têm sido colocados pelo mundo contemporâneo. Já tendo publicado autores e títulos como Fabio Caprio Leite de Castro (com Fenomenologia da Depressão), Irene Borges-Duarte (Cuidado e Afectividade) e Alexandre Marques Cabral (Ecofenomenologia Decolonial), apresentamos a seguir Urbano Sidoncha e seu livro Cultura Reconsiderada.
Urbano Sidoncha é filósofo, doutor em filosofia contemporânea pela Universidade de Lisboa e professor da Universidade da Beira Interior. Em Cultura Reconsiderada, aborda questões acerca do tema da cultura a partir das particularidades de sua definição e dos desdobramentos do aspecto polissêmico, ou “ecológico” do termo. Propõe uma reflexão sobre uma Ciência da Cultura que leve em consideração as complexidades de uma ciência – e suas tensões com os parâmetros das ciências exatas e da natureza – dedicada a um fenômeno vivo, dinâmico e em processo, como é a cultura. Nas palavras do autor: “uma ciência com IDH – Índice de Desenvolvimento Humano –, que se deseja capaz de inverter o seu imparável ciclo de empobrecimento, reconciliando-se com os sujeitos humanos e restabelecendo o vínculo vital com a energia criadora que a produziu.”
Em entrevista com a Editora, o autor expõe alguns dos temas presentes no livro, expande alguns conceitos e oferece explicações que auxiliam a leitura.
Para adquirir seu exemplar de Cultura Reconsiderada clique aqui.
Segue a entrevista na íntegra:
1) O livro Cultura Reconsiderada aborda os problemas de tentativas de definição “positivista” do conceito de cultura através do olhar das ciências. Como contraponto, ao invés de “coisa”, cultura é apresentada como um processo, um “esforço de contemporaneidade”. O senhor poderia elaborar um pouco sobre essa expressão? Como entender esse esforço de contemporaneidade?
Primeiro gostaria de sublinhar o seguinte: a definição de “cultura” que apresento no livro não pretende ser mais uma a juntar às centenas de possibilidades que a pesquisa, no seu registo científico-naturalista, tem apresentado, mostrando, a cada nova tentativa, o fracasso dessa estratégia. O que faço é seguir um itinerário orientado por duas preocupações centrais: primeiro, a definição de cultura deve operar a partir de um conjunto de noções auxiliares que não podem estar ausentes, sob pena de ferir-se irremediavelmente o amparo intuitivo que acompanha a compreensão deste conceito fundamental; depois, é necessário que esse conceito prove a sua eficácia como critério de relevância na circunscrição do que pode caber em sentido próprio num conceito de cultura. Por outras palavras, deve ser claro em que circunstâncias posso, de jure, fazer uso do conceito de cultura, de tal forma que, a partir desse uso, se crie verdadeiramente uma comunidade de sentido, isto é, que possa ter uma expectativa fundada de que serei compreendido quando fizer uso dessa palavra, o que hoje manifestamente não sucede. Ora, a definição que permite satisfazer simultaneamente esses dois requisitos, a par de um conjunto de outros avanços que o livro identifica, é justamente a de “exercício” ou “esforço de contemporaneidade”. Que significa isso? Que cultura sobrevém num processo de estabilização de uma presença que o tempo não terá possibilidade de apagar. Isso faz da cultura esse exercício ou esforço de contemporaneidade, dado que o que define a contemporaneidade, e o que a distingue do registo de superfície em que se move a atualidade – que também convoca uma presença, embora modalmente distinta – é precisamente a constância ou a perenidade dessa presença que não se extingue ou desativa com a marcha do tempo. Trata-se, além disso, de uma presença que transporta consigo o peso do processo que a estabilizou. Entre outras coisas, é isso que distingue a cultura das ciências, cujos êxitos podem ser medidos exclusivamente na base das suas sínteses, dos seus resultados, totalmente divorciados do contexto e do processo que os produziu. Isso seria impossível em cultura.
2) O trabalho apresenta um esforço de nutrir uma ideia polissêmica de cultura, que inclua e aceite sua diversidade de significados. Qual é o desafio de pensar nesse tipo de “inclusão” de significados em tempos contemporâneos?
Não há assunto mais relevante para uma discussão situada e com sentido sobre cultura do que o da contemporaneidade, pelas razões que referi há pouco. A intenção de nutrir um conceito polissémico, “ecológico” de cultura é mais o desfecho de uma crítica à pesquisa naturalista, “positivista”, da cultura, do que uma decisão teórica de fundo. Na estratégia naturalista, sacrificamos determinações de segunda ordem para que seja apurada uma cultura no seu registo “eidético”, com as suas qualidades essenciais. Mas o que fica de fora, o que é sacrificado, é ainda a expressão do rosto humano que o produziu. A obsessão pela unidade, que atinge na máxima aristotélica “do diverso não reza a ciência” a sua expressão programática plena, impõe à cultura um preço demasiado alto: renunciar às determinações humanas que constituem o próprio pulsar do conceito de cultura. Ao fazê-lo, caímos, também nós, enquanto sujeitos humanos, no registo da mais absoluta alienação, dado que não nos revemos nesse conceito de cultura muito enxuto que a ciência insiste em oferecer-nos. Ao contrário, sentimo-lo como uma intrujice, uma contrafação que não adere à realidade humana a que supostamente ele se reporta. A alternativa a este estado de coisas exige, pois, uma resposta abrangente e compreensiva, a começar pela própria Universidade, que tem, neste apartado, grandes e inelidíveis responsabilidades. Esse é, aliás, um dos contributos de maior alcance deste livro: não cair na tentação fácil de apresentar ao leitor uma compreensão nefelibata, sobrepairante e de inspiração metafísica de cultura, antes um conceito cuja operacionalidade e eficácia na contemporaneidade podem ser testadas em diferentes registos mundanos: na relação com a ciência (e nessa medida com a própria Universidade), com a política, com a história, com o patrimônio, com os temas das identidades nacionais, da democracia, com os conceitos de sensibilidade e de suspeita, etc. De tudo isso trata o livro.
3) O trecho “uma humanidade amputada, higienizada, apartada do elo que nos vincula à realidade será efetivamente uma humanidade plena?” alerta para o tipo de pensamento reducionista que busca excluir dos estudos de cultura (e outros assuntos) a contribuição dos sentidos, ou seja, a experiência como sentimos. Qual é a importância de um estudo de cultura baseado no sensível?
É uma questão decisiva. A tradição filosófica ocidental constituiu-se no aprofundamento da desconfiança em relação à sensibilidade e ao sensível. Pensemos na alegoria da caverna de Platão ou na máxima cartesiana do “não sei se sou um corpo” para que se perceba como foi coesa, profunda e devastadora essa estratégia de depreciação e desqualificação da sensibilidade. No livro discuto os efeitos que isso produziu na nossa autocompreensão enquanto sujeitos humanos. É justamente essa ideia de uma “humanidade higienizada” que procuro combater, tanto mais que essa mutilação hipotecará definitivamente a eficácia do próprio conceito de cultura. Essa será, para responder à pergunta, a importância de um estudo de cultura baseado no sensível: perceber que devemos começar por uma exigência de reabilitação do sensível como dimensão autenticamente humana, projeto que erradamente julgáramos terminado na segunda metade do século XVIII com a constituição da moderna Estética. A exigência de “culturalização do sensível” que refiro no livro mais não é do que a expressão dessa intenção de reintegração do sensível no espaço de uma humanidade plena. Sendo absolutamente necessário, constato também que este exercício tomba facilmente num excesso ou abundância do sensível que os séculos precedentes, marcados, como disse, por uma profunda desconfiança relativamente aos sentidos, dificilmente deixariam adivinhar. É isso que justifica ainda a invocação, que o livro também faz, de uma “sensibilização da cultura” a ser analisada pelo viés da “embriaguez do sensível”. Com efeito, ao internalizar o mecanismo da “dessensibilização”, o conceito de cultura passa a significar “em excesso”, induzindo o efeito anestético da paralisia, da inação e da suspensão do juízo. O projeto de sensibilização da cultura será assim, paradoxalmente, o projeto de uma dessensibilização para a cultura. Uma discussão situada e consequente do conceito de cultura não pode, portanto, elidir a importância desta reflexão sobre o sensível.
4) Há uma corrente que atribui, com frequência, a uma certa pós-modernidade, a introdução ao pensamento de uma indevida fragilidade a partir de questionamentos de antigos preceitos progressistas (liberdade, democracia, igualdade social, etc.). A partir desta crítica, a noção de cultura ora é acusada de uma impostura intelectual (as questões verdadeiras seriam então a economia, as classes sociais, etc.), ora é transformada em uma hipertrofia conceitual, onde tudo cabe e nada mais é distinguível. O senhor entenderia que a noção de cultura se coloca, neste cenário, como a arena central de disputa para um justo diagnóstico da contemporaneidade? Em um ambiente onde os valores norteadores da vida social são o de eficiência, produtividade e normalização, como um debate sobre a cultura pode se colocar como uma forma de constituirmos sentido ao tempo presente?
Esse diagnóstico, que é inteiramente correto, foi uma de um conjunto mais alargado de razões que me levou a escrever este livro. Atente-se nisto: a ideia de uma “Cultura Reconsiderada” pode ser lida, e isso tem-me sido perguntado, como uma intenção de reverter o diagnóstico, que seria o meu, de uma cultura “desconsiderada”. E realmente a palavra “reconsiderada” chamada ao título, sem considerar agora o prefixo, postula ou convoca imediatamente duas dimensões de sentido: a primeira refere-se a um exercício de circunspeção, de atenção ou reflexão – i.e., considerar é dispor-se a pensar ou refletir sobre o objeto que é considerado, no pressuposto de que essa reflexão ou não foi feita ou foi feita de modo insuficiente – por um lado, significando também, por outro, estima, deferência e respeito. Como se percebe, a exortação que o título faz com vista a uma reconsideração da cultura, agora já com o prefixo, só fará sentido se partir do diagnóstico de uma cultura apoucada, quer dizer, desconsiderada, o que mais uma vez significa duas coisas: por um lado, que a cultura tem sido objeto de uma atenção meramente frugal ou não tem sido suficientemente ponderada ou refletida – desde logo pela academia, como insinuava há pouco; mas significa também, por outro lado, que, ao não ser suficientemente respeitada, temos uma cultura convertida em “moeda de troca”, perdendo com isso centralidade enquanto se vê diluída num processo cuja génese, movimento e direção última lhe escapa irremediavelmente. Temos de resto exemplos muito concretos dessas duas formas de desconsideração: desde logo, a naturalização ou “coisificação” da cultura que a reduz a patrimônio, realidade social, ou qualquer outra das suas múltiplas possibilidades. Outro será a transformação da cultura em adereço ou adorno obrigatório para concluir uma frase redonda dita intencionalmente para produzir a dormência dos sentidos. Já todos fomos brindados com alocuções, esgrimidas a pretexto de tudo e de nada, nascidas da união dos adjetivos “histórico”, “social”, “político”, “econômico” e “cultural”. Com efeito, não há político que se preze que, ao anunciar uma medida, qualquer que ela seja, receando não ser levado a sério ou atemorizado pela possibilidade de não ter o impacto esperado, não reproduza logo o mantra dos seus efeitos justamente nas esferas social, política, econômica e cultural, em que o “cultural”, que aparece sempre no fim, assinala, como é próprio de um ornamento, e atuando como se de um sinal de pontuação se tratasse, o sentido completo da frase, quer dizer, aquilo que nos permite avançar para a oração seguinte. A acusação de impostura intelectual e o diagnóstico de hipertrofia conceitual que refere na sua pergunta, e que discuto no livro, são outros bons exemplos da atualidade desta condição de uma cultura desconsiderada. Desse diagnóstico nasce a exigência programática de afirmação da centralidade da cultura que o livro assume, ao pretender que ela possa ter uma agenda sua, própria, recusando o proselitismo que a conduz à prossecução de interesses que não são, em sentido próprio, os seus. Não há aí o menor indício de deslumbramento ou da sobranceria que os detratores da cultura pressentem quando, diante desta justa reivindicação de centralidade da cultura, avisam, não sem alguma candura, que ela não é uma panaceia. Isso permite-me ir à última parte da sua pergunta: pode um debate sobre cultura contrariar o primado de valores como os da “eficiência” ou “produtividade”, dando um novo sentido ao tempo presente? Responderia dizendo que não há outra forma de o fazer. Um bom exemplo disso é a ideia, no livro transformada em manifesto, de uma ciência com IDH – Índice de Desenvolvimento Humano –, que se deseja capaz de inverter o seu imparável ciclo de empobrecimento, reconciliando-se com os sujeitos humanos e restabelecendo o vínculo vital com a energia criadora que a produziu.