Alex Epstein é uma das vozes mais surpreendentes no cenário da literatura hebraica contemporânea. Marcando sua estreia no Brasil, este livro apresenta 111 minicontos que com frequência desafiam nossas formas de compreensão ordinárias: tomando de assalto a imaginação do leitor e invadindo o espaço com generosas lufadas de ar fresco, eles continuam ressoando muito além do tempo da leitura. Tradução: Paulo Geiger. A obra de Alex Epstein vem ganhando atenção internacional com as recentes traduções para o inglês, francês, espanhol, russo, grego, alemão, croata, italiano e agora também o português. Dono de uma escrita sui generis e de uma imaginação prodigiosa, seu talento para sintetizar e associar ideias lança o leitor num tipo de experiência que transborda as fronteiras entre arte e vida, ficção e realidade, mitologia e biografia. Um dos traços definidores de seu estilo é a economia de palavras, inerente à forma de seu gênero preferido, o miniconto. Seus contos raramente ultrapassam uma página, mas costumam produzir um impacto inversamente proporcional ao número de palavras: a leitura é frugal, mas seu efeito, profundamente impregnante. Suas histórias são ao mesmo tempo sutis e pungentes, de grande força imagética, e nelas podemos perceber influências cruzadas das tradições oriental e ocidental, e mais especificamente, do pensamento zen-budista e da estética surrealista. Nota do Editor: A seleção dos 111 minicontos que compõem a edição brasileira de “Para a próxima mágica vou precisar de asas” foi ligeiramente alterada em relação à edição original em hebraico. Nove minicontos foram substituídos, em acordo com o autor, por outros inéditos em função de questões relacionadas à tradução.
[Minicontos Extras]
UMA LENDA AMARGA
Um homem sonhou que estava agonizando e que seu velho pai, que lhe dá de comer, dormia aos pés da cama. Quando acordou sentiu uma grande felicidade ao descobrir que seu pai não estava dormindo aos pés da cama. Um fato totalmente diferente aconteceu uma vez com um monge Zen, que os transeuntes viram sentado na fronde de um limoeiro. Ante a surpresa deles o monge respondeu que subira na árvore por causa do tigre. “Não estamos vendo nenhum tigre aqui”, espantaram-se os transeuntes. “Então subam vocês também”, ele disse.
SOBRE KITSCH
A reconstituição que se realizou ainda na noite do assassinato revelou que a criatura alada fora atingida por um tiro na nuca, quando estava de pé vertendo suas águas. Dez grãos[1] de milagres desceram ao mundo, e Jerusalém ficou com mais de nove. De manhã bem cedo, uma turma do departamento sanitário da prefeitura lavou os respingos de urina e de sangue do Muro.[2]
ENQUANTO ISSO, COM OS TCHEKHOVS
O ponto por trás da cortina, que no início do primeiro ato sentiu que dezenas de milhares de formigas carregavam migalhas de pão dentro de seu peito, acabou gritando de pânico e desabando no fim do terceiro ato. A atriz principal desistiu da última fala e correu para reanimá-lo. Ele sempre havia sido apaixonado por ela, é claro. Mas desta vez foi uma parada cardíaca de verdade.
SOBRE A DIFERENÇA ENTRE UM ROMANCE E UM MINICONTO
Os minicontos não têm estraga-prazeres. Mas uma vez em Roma um homem com um revólver pediu aos transeuntes que atirassem nele tendo como fundo o Coliseu.
METAFICÇÃO
O fantasma ainda amamentava.
INTIMIDADE
Os índios acreditam que a aranha é um homem primevo. Se você soprar em cima dela, o homem vai despertar e por um momento esquecer o nome dele. Mas assim que ela acordou de um sonho em que não conseguia respirar, arranhou com selvageria o braço do homem que dormia ao seu lado e não entendeu como é que ele não sentia dor alguma.
A MULHER COM O GUARDA-CHUVA
Como dizem os ingleses, chovia gatos e cães. Não pude usar a câmera fotográfica. Continuei a andar atrás dela na esperança de que a chuva diminuísse. Enquanto isso o meu guarda-chuva também resistia. O porta-bebê em suas costas estourava de tantos livros.
A SOLUÇÃO DO MISTÉRIO (DO DETETIVE QUE SE VALEU DO HIVEMIND)
A entrada do prédio estava bloqueada pela neve que tinha caído durante toda aquela semana e os pés dele ficaram totalmente molhados. Ignorando os olhares estarrecidos dos guardas que faziam a ronda, descalçou os sapatos, tirou as meias e entrou no prédio descalço. No apartamento ainda se viam sinais de luta e um pouco de sangue coagulado, mas não se encontrou nenhum corpo. Ele circulou pelos quatro aposentos completamente entediado, olhando de vez em quando para o celular. Duas ou três vezes digitou algo na tela sensível ao toque e apertou ‘enviar’. Ao cabo de meia hora cansou de esperar. Devolveu o celular ao bolso do casaco e tirou um antigo livro de suspense de uma das prateleiras na sala de estar. As páginas tinham cheiro de pólvora.
SACHA ZEN
Uma vez Sacha Semionovitch percebeu que se ele andava, a chuva cessava. E se ele parava, a chuva voltava a cair. E já lampejava nos pensamentos de Sacha Semionovitch um plano detalhado de como enriquecer com a ajuda desse novo talento que descobrira ter. E depois pensou, assim mesmo: talvez seja uma dessas descobertas que é melhor guardar consigo mesmo. Pois já se dissera antes: Sacha Semionovitch não tinha problemas com as autoridades, mas as autoridades tinham problemas com Sacha Semionovitch.
Veja só, uma vez Sacha Semionovitch foi ver um acupunturista chinês. Não foi de boa vontade (já diziam nossos sábios: assim como eu danço na sua frente e não toco em você, assim se outros dançarem na minha frente para me prejudicar não vão tocar em mim). O acupunturista acupunturou e acupunturou, em volta do umbigo e nos braços e nas pernas, e depois deixou Sacha Semionovitch deitado durante vinte minutos com as agulhas, para que os meridianos se abrissem. Depois de duas horas (mais ou menos) Sacha Semionovitch despertou da leve sonolência em que mergulhara e compreendeu logo: o torturador chinês fora assassinado. E que se faz agora? Primeiro se tiram as agulhas? Ou primeiro se avisa à polícia? (Se responder corretamente, disse uma voz maligna na cabeça de Sacha Semionovitch, você chegará à Iluminação.)
E quanto ao mesmo assunto (mais ou menos): uma vez Sacha Semionovitch não conseguiu achar o saca-rolha em lugar algum. Depois que terminou de virar toda a cozinha dirigiu-se ao criador do mundo e perguntou: “Criador do mundo! O que quer que eu faça agora? Que perca o último resquício de autorrespeito que ainda me resta?!” O criador do mundo, como acontece às vezes, não respondeu a Sacha Semionovitch. Talvez porque o jogo de palavras não lhe tenha agradado. E talvez por outros motivos. Sacha Semionovitch pôs a garrafa de vinho sobre o mármore da pia da cozinha, brandiu o martelo e fechou os olhos, esperando uma intervenção celestial no último minuto. (Depois de dez minutos Sacha S. pensou: Existe alguma coisa insatisfatória numa meditação com um martelo na mão.)
E quase esquecemos: uma vez Sacha Semionovitch encontrou na rua um sapato de salto alto que uma anja perdera quando alçava voo. Deixamos de lado a questão de se se tratava de uma anja de verdade, ou só era uma mulher com uma maquiagem pesada e uma fantasia. Sacha Semionovitch recolheu o sapato e o expôs no lugar mais bonito de sua casa, sobre o peitoril da janela. (Interessante saber se um homem pode fazer cócegas em si mesmo até morrer, perguntou a voz maligna em sua cabeça. Aqui, até mesmo Sacha Semionovitch se espantou: como a morte chegou até aqui?)
E muitas outras coisas estranhas aconteceram com Sacha Semionovitch: leu no jornal que na Suíça tinha-se descoberto uma partícula que se deslocava mais depressa do que a luz. Ele se lembrou do que diziam nossos sábios: E se seu coração dispara, volte para o lugar.[3] E ele pegou logo um trem para Jerusalém. E uma vez Sacha Semionovitch entendeu que atrás da geladeira havia mais uma geladeira. E atrás dessa mais uma geladeira. E mais uma. E só depois a poeira estelar. E uma vez Sacha Semionovitch despertou em sua casa e lhe parecia estar de novo em seu quarto de infância. Em sua cama. Seu pai estava sentado ao seu lado, e fumava. A fumaça de seu cigarro voluteava até a Lua. “Aqui não tem teto, pai”, disse Sacha Semionovitch. O velho pai deixou o cigarro cair no chão. Sacha Semionovitch não quis levantar de sua cama. Mas então seu pai começou a correr na beira do rio com uma pipa na mão e o menino Sacha Semionovitch o perseguia e tropeçou e caiu e se feriu no joelho e sangrou e nunca mais foi feliz. Ele despertou em sua casa. (Uma cidade sem pontes não é uma cidade, observou imediatamente a voz em sua cabeça. Aqui existem pontes, contrapôs-se Sacha. Mas não há rios, a voz encerrou o debate e pigarreou um breve sinal na garganta de Sacha Semionovitch). E muito mais coisas estranhas aconteceram a Sacha Semionovitch…
No fim, Sacha Semionovitch foi preso como suspeito pelo assassinato do acupunturista chinês (ou por outros motivos). Lá fora começou um dilúvio de proporções bíblicas, mas Sacha Semionovitch estava em sua cela, e não disse nada a ninguém: primeiro, porque não sabia quem era o culpado. E segundo, porque sabia que setenta por cento do corpo humano é feito de água. Mas o principal era que na garrafa imaginária em sua cabeça ainda restava uma gota.
Sacha Semionovitch era um homem um tanto exilado da realidade, isso é certo. Mas quem não?
[1] Provável tradução do hebraico kavin, medida bíblica para quantidade. NT
[2] Referência ao Muro das Lamentações, que em Israel geralmente é referido apenas como ‘Muro’. NT
[3] A palavra hebraica para ‘lugar’, makom, é também eufemismo para ‘Deus’. NT