Protagonismo Negro: Por que é importante atentar-se aos espaços ocupados (ou não) pela negritude na literatura nacional?

14/06/2022

Em julho de 2020, um levantamento realizado pela revista Veja apontou um acontecimento que pode ter passado despercebido para muitos, mas que tornou-se um marco para a negritude brasileira: dos 20 livros mais vendidos no país, sete eram de autoria de pessoas negras, dentre as quais 4 mulheres (tendo uma delas, Djamila Ribeiro, 3 de seus livros na lista).

Curiosamente, a maior parte dos livros que compuseram o ranking mencionado não apenas foi escrita por pessoas negras, como também trouxe em seu conteúdo diálogos e provocações importantes e, de certa forma, incômodas, sobre temas como racismo, feminismo, gênero e disparidade de classes.

À época, poderia parecer apenas o reflexo de um ano atípico. Entretanto, no final do ano seguinte, a obra Torto Arado, publicada pela editora Todavia, tornou-se o livro de ficção mais vendido pela Amazon Brasil em 2021, com 74 mil exemplares vendidos no ano. Acompanhando o sucesso da publicação, o autor Itamar Vieira Junior tornou-se o escritor brasileiro vivo mais vendido e um dos mais premiados da atualidade. 

Itamar é um retrato bastante preciso da diversidade étnica que caracteriza a população do país: o autor, que é soteropolitano, geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA, descende de negros escravizados vindos de Serra Leoa e da Nigéria, assim como de indígenas Tupinambás, da região de Coqueiros do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano.

Logo, nota-se que não há coincidências: o livro, valendo-se dos recursos da ficção, retrata em grande parte de suas páginas a realidade de milhões de homens e mulheres negros e indígenas da população brasileira, como os que provavelmente cercaram o autor ao longo de sua vida. A obra discorre sobre a trajetória de duas irmãs gêmeas, negras, sem acesso à educação e vivendo com sua família em condições análogas à escravidão no sertão baiano, em uma comunidade quilombola como tantas do país. Além disso, a obra também trata, de forma bastante sensível e poética, questões religiosas pouco exploradas, como o sincretismo entre o cristianismo e religiões de matriz africana e indígena.

Bibiana e Belonísia, as personagens principais do livro de Itamar Vieira Junior, refletem a realidade de uma série de pessoas reais, contemporâneas, que viram surgir nas últimas décadas não apenas a possibilidade, mas também a responsabilidade de romper com diversos paradigmas (como o escravocrata e o do branco salvador), e promover a luta pela total libertação de si e dos seus em um mundo diferente, um mundo dotado de conexões tecnológicas e de extenso acesso à informação, outrora inexistentes para seus ancestrais.

Não é compreensível que a grande maioria dessas pessoas, que nos últimos 20 anos obtiveram mais e melhores possibilidades de educação e alfabetização, se identifique com as histórias, dilemas e desafios retratados nas páginas escritas por autores negros? 

E por que isso importa?

Uma pesquisa realizada entre 2004 e 2014 apontou a dimensão do privilégio branco na produção literária brasileira: 97,5% dos autores nacionais no período estudado eram brancos. Os dados, que procedem do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, coordenado pela professora Regina Dalcastagnè, não param por aí: apenas 6,9% dos personagens retratados nos romances eram negros, sendo que só 4,5% eram protagonistas da história. A discrepância é evidente e escancarada, uma vez que menos da metade da população brasileira (47,73%) é composta por pessoas brancas.

Os números nos permitem considerar dois pontos importantes. O primeiro nos mostra que o negro, apesar de ser maioria na população brasileira, é sistematicamente secundarizado e até mesmo excluído dos veículos que dão forma ao imaginário coletivo. Isso não acontece apenas nos livros, mas também em novelas, séries, filmes e produções teatrais, por exemplo. 

Outro fato bastante comum ligado a esse ponto é a constatação da contínua representação do negro não apenas em papéis secundários, mas também em papéis que remetam à vilania ou ao mau-caratismo. É comum que produções televisivas e cinematográficas limitem os negros aos papéis de traficantes, prostitutas, assassinos ou agressores, por exemplo. 

O segundo ponto, por sua vez, nos apresenta a importância da ascensão e ocupação de espaço contínua por parte de autores negros para a completa transformação desses paradigmas, imprimindo uma negritude verdadeiramente empoderada e consciente de suas possibilidades, não apenas em sua autoria, mas também em seus personagens, assuntos e questionamentos. 

Assim, é possível crer em um cenário cultural e literário mais diversificado, que retrate de fato o que o Brasil é: um país multicultural e miscigenado, no qual os negros devem ocupar espaços de protagonismo, liderança, inteligência e beleza, não apenas na arte, mas na sociedade como um todo.

As consequências da proeminência de questões de raça na produção textual brasileira

Entretanto, é importante lembrar que existem também as consequências do recrudescimento das reações conservadoras.

Jeferson Tenório, professor e doutor em Teoria Literária pela PUCRS, é autor do romance O avesso da pele, publicado pela Companhia das Letras, com o qual entrou na lista de mais vendidos e pelo qual recebeu um Prêmio Jabuti em 2021. 

Contudo, nem mesmo os louros recebidos por sua obra o pouparam da realidade de milhões de pessoas negras no país. Às vésperas de uma palestra marcada em uma escola de Salvador, o autor deparou-se com o que tem se tornado cada vez mais comum em um Brasil que vem enfim se descobrindo e se assumindo racista: ameaças de morte recebidas através do seu perfil no Instagram. Por consequência, a palestra realizou-se via videoconferência, a fim de garantir a segurança do escritor.

O escancaramento do racismo em diversas esferas da sociedade, inclusive a artística, mostra o quanto ainda é carente de apoio a luta e a resistência dos movimentos sociais, políticos e culturais promovidos pela população negra brasileira. 

No país de Maria Carolina de Jesus, Lima Barreto e Conceição Evaristo, somos chamados a lembrar e descobrir que Machado de Assis, considerado o maior autor brasileiro de todos os tempos, também é negro, apesar do embranquecimento que a sua imagem, registrada apenas em preto e branco, sofreu ao longo do último século.

É necessário, portanto, que haja uma ampliação contínua da conquista de espaços, uma vez que estes não serão facilmente concedidos. Esses espaços servirão ao propósito não apenas do discurso antirracista, mas também para que sejam conhecidas as belezas trazidas na história e no sangue da negritude nacional, desde a África, passando pelos sincretismos e milhares de formas de resistências, como a música, e chegando ao agora, no qual jovens em todos os cantos descobrem a beleza de serem quem são. 

Os livros, nesse contexto, ascendem ao seu papel de facilitadores dos processos de transformação.

A Nau continua firme em seu papel de semear formas mais criativas e vivas de tecer nossa sociedade. Para conhecer alguns títulos do nosso acervo, navegue pelas tags História, Racismo e Antirracismos.

Escrito por Deborah Harue – @viagensliterariasdadebs