Racismo, machismo, encarceramento: problemas que o Brasil não quer ver

06/07/2022

por Leonardo Porto Passos

Em 1888, no dia 13 de maio, a então regente do Brasil, princesa Isabel, assinou o documento conhecido como Lei Áurea, que decretava a abolição da escravatura no Brasil, o último país do Ocidente a determinar o fim da escravização dos negros. Ao contrário do que ainda ensinam muitas escolas, a medida tardia não foi um ato de benignidade por parte da monarquia brasileira, mas um processo de árdua e corajosa luta dos povos afrodescendentes que aqui viviam, que se organizaram em diversas formas de insurreição, e também receberam algum apoio da classe média e dos profissionais liberais.

Pouco mais de 30 anos antes, o país ainda praticava o tráfico negreiro, que foi “proibido” (no papel, pois não deixou de ser praticado efetivamente) somente em 1850, com a aprovação da Lei Eusébio de Queirós, por conta de pressão promovida pelos ingleses. Por aqui, a escravidão foi avassaladora, uma das piores do mundo. De acordo com estatísticas, o Brasil recebeu de 38% a 44% de africanos que foram retirados à força do continente, com escravos espalhados por todo o território nacional, diferentemente do que ocorreu em outros países escravistas, como os EUA, que concentravam os escravos no Sul e possuíam outro modelo econômico no Norte (CARNEIRO, 2018).

Todo esse histórico de escravidão e crueldade (perdão pelo pleonasmo) teve seu fim postergado ad infinitum pelo Império Brasileiro, a ponto de culminar em sua derrocada no ano seguinte, em 1989, quando Pedro II foi deposto por um golpe de Estado que deu início ao regime republicano, que se esforçou para esquecer, ou melhor, “apagar” a escravidão secular perpetrada no país. Mas nada tão sério e desumano pode ser apagado assim. Certamente os ex-escravos não receberam condições dignas de integração à sociedade – ao contrário: receberam a tal “liberdade” sem oportunidades de levarem a vida adiante enquanto os escravocratas recebiam indenização da Coroa brasileira e passaram a privilegiar a contratação de imigrantes europeus –, tampouco o racismo teve seu fim com o famigerado documento assinado de forma pomposa pela princesa regente. O resultado foi, no mínimo, a enorme desigualdade social presente no Brasil até hoje, além do racismo estrutural, que parte da sociedade branca – tradicional e conservadora – insiste em alegar ser inexistente ou “mimimi”. Fato é que a questão racial está intimamente ligada à estratificação, em especial no acesso ao ensino superior e na mobilidade social (DESIGUALDADES, 2021). E parte significativa dos direitos conquistados a duras penas ao longo de mais de um século, e que devem ser continuamente lembrados, corre o risco de ser extinta nas mãos de governos e entidades neoliberais e fascistas.

Fato é que, em pleno século XXI, negros têm menos acesso à educação, à saúde, ao transporte, à moradia de qualidade, ao consumo. É evidente que negros integram as classes menos favorecidas. O desemprego e os subemprego são absolutamente desproporcionais em relação aos negros. Jovens negros estão entre as maiores vítimas de assassinato no país.

A situação racial adquire novos contornos quando somada à questão de gênero. Às mulheres negras são relegados papéis na sociedade que contribuem para sua exclusão social, geralmente em ambientes domésticos que as restringe de ingressar no mercado de trabalho, impossibilitando seu desenvolvimento profissional e acesso a rendas mais elevadas (DESIGUALDADES, 2021). Em média, elas recebem menos da metade do salário de um homem branco que exerce função semelhante. Mulheres negras são as maiores vítimas de violência obstétrica e de abortos malsucedidos, além de serem as mais punidas por sua realização (RÊ et al., 2021). Se tudo isso não é suficiente para atestar a desigualdade racial brasileira, basta dar uma olhada para o sistema carcerário.

De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) 2019 (BRASIL, 2019), realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o número de pessoas encarceradas no Brasil é o terceiro maior do mundo – com Estados Unidos e China ocupando o primeiro e segundo lugares, respectivamente –, sendo que 49,88% dos presos se autodeclaram como pardos, 32,29% como brancos, 16,81% como negros, 0,8% como amarelos e 0,21% como indígenas. Entre o público feminino, que representa cerca de 4,94% do total, as maiores incidências por tipo penal são: 50,94% drogas, 26,52% crimes contra o patrimônio e 13,44% crimes contra a pessoa. Dentre elas, 225 são lactantes e 276 são gestantes ou parturientes. O número de mulheres encarceradas cresceu de 5,6 mil em 2000 para 37,2 mil em 2020. A provável causa para tão alarmante crescimento provavelmente é a triste soma de fome com desemprego, que se acentuou com a pandemia da covid-19 (ABBUD, 2019).

O sistema democrático-capitalista brasileiro parte da premissa que a detenção impele os prisioneiros à transformação, obrigando-os a revisar e reavaliar suas atitudes e existências para que depois possam voltar ao convívio em sociedade. Porém, os índices de criminalidade e reincidência não diminuem, o que atesta o fracasso do sistema prisional, já que a grande maioria dos presos não se transforma. E já há alguns anos, há uma tendência global de diminuição da proposta de reabilitação dentro das prisões em contraposição ao recrudescimento das políticas de segurança pública, com decorrente ampliação da população encarcerada e, consequentemente, na superlotação do sistema carcerário, o que, por sua vez, diminui ainda mais as chances de reabilitação dos presos (NOVO, 2018).

Porém, ao contrário do que é propagado pela mídia e por governos, o que o Brasil necessita não é de mais prisões (são 755.274 pessoas encarceradas para 442.349 vagas no sistema prisional em 2020), e sim da radical transformação do sistema carcerário para que a reabilitação realmente possa ser promovida pela educação e pelo trabalho, ou seja, pela reconquista da dignidade, e não por sua degeneração.

Em um contexto de ampla desigualdade social e discriminação racial histórica, a liberdade e a vida de afrodescendentes são subjugadas por interesses escusos e pela conveniência das classes dominantes. Quando se trata de mulheres negras, a situação é ainda mais calamitosa, já que além de racista, vivemos em uma sociedade abertamente machista. São muitas as mães solteiras que foram abandonadas pelos companheiros e que carregam o ônus de cuidar sozinhas dos filhos. Ser mulher negra, no Brasil, não é fácil. Mais difícil ainda é ser negra, mãe e encarcerada. Basta ver o número de mulheres negras em cargos políticos, por exemplo. O assassino de Marielle Franco até hoje não foi encontrado, mesmo quatro anos após a ocorrência do crime. O Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de feminicídios, e 61,8% delas são negras (ROSA, 2021). Não é de hoje que o Brasil carece de conscientização, de justiça social e de igualdade racial, não de aumento do contingente policial ou de mais prisões.

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INDICAÇÃO DA NAU: aproveitando o tema, sugerimos o livro recém lançado da autora Nana Moraes: AUSÊNCIA, o segundo livro da trilogia DesAmadas. No título inicial da série, “Andorinhas” (2011), Nana contou a história, através de suas lentes, de prostitutas à margem da rodovia Presidente Dutra.

“Ausência” é o resultado do projeto Travessia, que promoveu a comunicação, através de troca de cartas e fotografias, de mulheres privadas de liberdade do Complexo do Gericinó (RJ) com seus filhos ou outros membros da família.

Para isso, Nana Moraes viajou por diversas cidades e regiões do país, entrevistando pessoas que corajosamente compartilharam suas histórias de vida, dores e esperanças. Posteriormente, bordou as imagens e textos em pranchas que fazem uma síntese poética e catártica dessas vivências.

Confira mais sobre a obra no link: https://naueditora.com.br/produto/ausencia/ 

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Referências:

ABBUD, Bruno. Pandemia pode ter levado Brasil a ter recorde histórico de 919.651 presos. O Globo, Rio de Janeiro, 5 jun. 2022. Brasil. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/06/pandemia-pode-ter-levado-brasil-a-ter-recorde-historico-de-919651-presos.ghtml>. Acesso em: 7 jun. 2022.

BRASIL, Governo Federal. Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) 2019. Atualizado em 24 jun. 2020. Disponível em: <http://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiN2ZlZWFmNzktNjRlZi00MjNiLWFhYmYtNjExNmMyNmYxMjRkIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9>. Acesso em: 7 jun. 2022.

CARNEIRO, Júlia Dias. Brasil viveu um processo de amnésia nacional sobre a escravidão, diz historiadora. BBC News Brasil, Rio de Janeiro, 10 maio 2018. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-44034767>. Acesso em: 7 jun. 2022.

Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2019,

DESIGUALDADES raciais no Brasil e suas múltiplas dimensões. Oxfam Brasil, São Paulo, 13 out. 2021. Blog. Disponível em: <http://www.oxfam.org.br/blog/desigualdades-raciais-no-brasil-e-suas-multiplas-dimensoes-2/>. Acesso em: 7 jun. 2022.

NOVO, Benigno Núñez. Realidade do sistema prisional brasileiro. Conteúdo Jurídico, Brasília, 13 mar. 2018. Direito Processo Penal. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51427/realidade-do-sistema-prisional-brasileiro>. Acesso em: 7 jun. 2022.

RÊ, Eduardo de et al. Desigualdade racial no Brasil: uma realidade atual. Politize!, Florianópolis, 15 jun. 2021. Equidade. Disponível em: <http://www.politize.com.br/equidade/blogpost/desigualdade-racial-no-brasil/>. Acesso em: 7 jun. 2022.

ROSA, Patrícia. Luta contra a violência à mulher: Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial do feminicídio. Afirmativa, 12 out. 2021. Notícias. Disponível em: <http://revistaafirmativa.com.br/luta-contra-a-violencia-a-mulher-brasil-ocupa-o-5o-lugar-no-ranking-mundial-do-feminicidio/>. Acesso em: 7 jun. 2022.