Resenha #1: Todo dia

26/09/2019

Hoje inauguramos uma coluna do Blog da NAU muito aguardada: a de Resenhas! Neste espaço vamos compartilhar as análises enviadas por vocês, nossos queridos leitores! 

E a primeira publicação é muito especial. Gisele Eberspächer, jornalista e colunista do blog Rascunho fez uma descrição do livro Todo dia, da húngara Terézia Mora. 

Considerado por muitos críticos como uma das grandes obras alemãs contemporâneas, Todo dia foi traduzido para o português em 2018 e publicado, com muito orgulho, por nós. 

Confira a resenha: 

“Vamos chamar o tempo de agora, vamos chamar o local de aqui.” Com esse deslocamento do leitor (que pensa, obviamente, no seu próprio agora e aqui), Terézia Mora, autora húngara radicada na Alemanha, começa Todo dia. Publicado em 2004 em sua versão original e em 2018 no Brasil, com tradução de Aldo Medeiros, o livro é considerado por muitos críticos como uma das grandes obras alemãs contemporâneas.

Em um lugar e um tempo não definidos, o leitor pode acompanhar a vida — todo dia — de Abel, um estrangeiro. Sem cidades ou países definidos para a narrativa, fica claro que, para a autora, o ser estrangeiro é muito mais um sentimento do que uma questão geográfica. (Não é muito difícil para o leitor imaginar, com algumas informações dadas, que o país do qual Abel poderia ter vindo é da antiga Iugoslávia e estaria provavelmente na Alemanha. Mas esse é apenas um eco do livro, não sua voz mais alta.)

Mora constrói o livro de forma fragmentada, como se fosse possível recortar os dias da cronologia de uma pessoa, misturá-los e reorganizá-los de uma maneira que fizesse mais sentido temático. In media res, encontramos o personagem, divorciado, em uma situação estranha em um parque, pendurado de forma violenta e precisando de cuidados médicos (uma ocorrência que só se esclarece completamente no final do livro).

A partir disso, os diferentes momentos da vida de Abel se intercalam, mostrando a infância em outro país, a adolescência com a ausência paterna, o começo da vida adulta como um desertor (depois de ter fugido do serviço militar obrigatório) e como um acadêmico. Mas não só — entre eles se intercalam a vida de outras pessoas, estrangeiras ou não, que cruzam seu caminho. Assim, qualquer tentativa de fazer uma sinopse mais completa da obra me parece uma simplificação do processo de leitura — no qual o importante não é só o que, mas também o como e o quando.

Uma das características principais de Abel, porém, não pode passar batida: é considerado um gênio por muitos dos personagens por sua capacidade de falar fluentemente dez línguas. Mas o vocabulário extenso e diverso não dá ao personagem a capacidade de se comunicar — troca poucas palavras com aqueles que conhece. Afásico, é considerado um gênio atormentado. Ainda que faça pouco para manter esse status: vive de bolsas por algum tempo (ainda que os cursos não lhe rendam nenhum trabalho final) e, depois, trabalha minimamente com aulas e traduções para conseguir se manter. Uma figura que, certamente, guarda suas semelhanças com Bartleby, Stoner ou Oblomov.

Quero voltar ainda na questão das línguas. Abel é uma figura constantemente presa entre seu passado (frequentemente interrompido) e seu futuro incerto enquanto imigrante — uma figura sem um aqui e um agora definidos. Mesmo com suas dez línguas, não consegue dar conta, narrativamente, de sua existência. Afinal, um falante consegue se comunicar com alguma língua sem um aqui e um agora?

Pessoas e vozes

As técnicas que mais chamam atenção na escrita de Mora são a apresentação de novos personagens e a construção do narrador, feitas de maneira interligada constantemente. A autora apresenta os personagens em uma espécie de rede, deixando encontros e desencontros evidentes em todos os instantes da narrativa. O círculo de conhecidos de Abel se forma quase que por acaso, com as pessoas que encontra fortuitamente enquanto navega pela vida — Kinga, por exemplo, é uma mulher que conhece no trem enquanto está fugindo e que se tornará mais presente na sua vida no futuro; Konstantin, amigo dos primeiros anos, o encontrou em uma praça e o ofereceu abrigo na primeira noite na nova cidade.

Em parte, essa rede mostra os imigrantes como construtores de redes quase paralelas de socialização, já que a integração na nova sociedade acontece em poucos casos nessa narrativa. Uma cidade dentro de uma outra cidade. Acontece brevemente, por exemplo, com o próprio Abel, que encontra na figura de Mercedes (assistente de um professor que o ajudou quando chegou no novo país) uma maneira de prolongar seu visto e um ponto de afeto. O debate sobre migrações, identidade e integração é mostrado em diversos personagens e relações na obra de Mora.

Esses encontros são narrados em terceira pessoa na maior parte do livro. Mas, sem nenhum tipo de alerta, o narrador se transforma em uma primeira pessoa, fazendo um comentário espontâneo e com frequência irônico, revelando muitas vezes a intimidade de algum dos personagens. Não é incomum, principalmente no começo do livro, que o leitor se pergunte se deixou passar alguma coisa. Mas logo se percebe que essas inserções nada mais são do que comentários dos próprios personagens, deixados ali como fragmentos de vozes e pensamentos que agregam à obra uma complexidade muito maior, sem falar em uma camada de interpretação e significação nova.

Abel é um personagem em um lugar ao qual não pertence — e sem ter um lugar ao qual possa pertencer. Com questões no seu passado e incertezas do futuro, não têm um aqui e um agora para se situar no mundo. Flutuando, não há língua que seja capaz de usar para dar conta de sua própria narrativa. O narrador construído pela autora, porém, é quase o oposto do personagem. Tem uma linguagem flexível o suficiente para dar conta da multiplicidade de personagens, acontecimentos, sentimentos e histórias que se desenvolvem ao longo das mais de 500 páginas do livro. Um narrador que se transmuta sempre que necessário e se torna, assim, sempre uma personagem nova.

Mora alcança o que Abel não consegue: narrar os indivíduos em um mundo multicultural, com inúmeros aquis e agoras. Uma obra monumental para um mundo com cada vez mais exclusões, crises, políticas segregatórias e incertezas constantes.”

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