Resenha: “180º: Minhas reviravoltas com o câncer de mama”

20/08/2024

Resenha de Juliana Caruso

(Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – USP)

Autora: Dulce Ferraz
Ilustração de Camilla Siren
Colaboração de Soraya Fleisher e Fabiene Gama
Rio de Janeiro: Editora NAU, 2022

Carolina Passos, a Carol, é pesquisadora, mãe de duas filhas, Manu e Nina, com o seu companheiro, Otto, médico. Perto das festividades de final de ano, na casa de seus pais, Carol percebeu “uma bolinha” no seio esquerdo que até então não estava ali. Após alguns dias mantendo a esperança de que aquele achado desapareceria, ela constatou novamente sua presença e decidiu consultar o médico da família. Dessa primeira consulta, Carol inicia um percurso de exames que a leva ao diagnóstico de um câncer de mama em estágio inicial. Esse diagnóstico, demorado, ritualizado e marcado por tensões e ecos nos diálogos com os profissionais de saúde, conduziram Carol até a “cirurgia conservadora” para a retirada do nódulo. Ao término da operação, com a reavaliação do material, novas questões e diagnósticos apareceram, bastantes relacionadas aos acompanhamentos e procedimentos do pós-cirúrgicos como: radioterapia, hormonioterapia, debates sobre quimioterapia, testes genéticos de predisposição, sexualidade e expectativas sobre o futuro pós-câncer. Felizmente, parte de suas dúvidas e questões foram acompanhadas de perto pelos membros de associações de mulheres que experienciaram o adoecimento pelo câncer, pelas pessoas das associações de apoio aos pacientes com câncer, por seus familiares e amigos, formando redes de apoio e cuidados que ajudaram em suas escolhas.

Talvez a história de Carol pareça bastante familiar para quem vivenciou ou presenciou de alguma forma o adoecimento pelo câncer. Justamente por isso a personagem desta HQ (ou Graphic novel) de Medicina Gráfica, a Carol, inspirada na experiência da autora principal, Dulce Ferraz, é tão profunda e potente. Assim como a Carol tem uma rede essencial de suporte, a HQ também é fruto de colaborações e trabalho coletivo. A autora principal, Dulce Ferraz, é doutora em Saúde Coletiva, pesquisadora da Fiocruz e atualmente pós-doutoranda na Université Lumière Lyon II. Foi a partir de suas anotações e da autoetnografia que boa parte das experiências e personagens que ilustram a trama surgiram, ganhando contornos precisos por meio dos debates com profissionais da área da saúde, mas especialmente com as colegas que compõem essa obra: Fabiene Gama, antropóloga e professora da URFGS, especialista em antropologia visual, da saúde e que vem trabalhando com autoetnografia; e Soraya Fleischer, também antropóloga e professora na UnB, com vasta produção na áre a da antropologia da saúde e educação em antropologia.

A obra como um todo é composta do prefácio de José Ricardo Ayres, médico e professor da FMUSP; apresentação redigida por Dulce Ferraz; três capítulos sobre a experiência da Carolina, a HQ; um texto intitulado “como este livro foi produzido”, colocando o debate entre as autoras e Camila Siren, designer e autora responsável pelas ilustrações, colorismos e letrismo da obra; um artigo de Ferraz debatendo “Por que usar quadrinhos para falar sobre câncer de mama?”; um artigo de Fabiene Gama “A potência da autoetnografia para a área da saúde”; um último texto de Soraya Fleischer “Como este livro pode ser aproveitado?”; glossário para termos que aparecem na história e, finalmente, a contracapa redigida pela antropóloga e professora da UFRGS , Claudia Fonseca.

A escolha de Camila Siren como ilustradora e de sua rede de artistas foi bastante acertada. A artista logrou êxito ao transmitir acuidade dos ambientes hospitalares, máquinas de exames e outros procedimentos nos quais as opções por cores, contrastes e metáforas, cuidadosamente pensadas, foram essenciais para fazer desta HQ de Medicina Gráfica uma história tão impactante. Vale destacar algumas cenas, como as imagens nas quais Carol passa por radioterapia ou por exames com contrastes que fazem alusão ao termo radioativo nos quais Siren usa o recurso das cores fluorescentes. Em outros trechos, a artista optou por cenários de fundo que trazem à tona outros debates, como o uso de paredes com inscrições que remetem à hieróglifos no momento em que a personagem discute como os laudos de exames, cujos resultados estão em siglas e acrônimos, são indecifráveis para pacientes e leigos na linguagem biomédica em geral.

Os diálogos que a obra tece, em muitos dos aspectos da vivência da personagem e suas autoras, são impressionantes. Entre eles, gostaria de destacar as interações e escolhas de Carol com os profissionais da área da saúde. Desde o século XX, muitos estudos se dedicaram a pensar as relações dos biomédicos com pacientes, mas como sugerem Potter e Mckinlay (2005), para o século XXI, talvez o mais apropriado seria incluir também a ideia de encontros e não apenas de relações. Nos diálogos e encontros com profissionais da saúde, a personagem proporciona que a leitora refleta sobre questões como empatia, informação ao paciente e escolhas pelos itinerários terapêuticos. Profissionais da biomedicina que a escutavam, discutiam os tratamentos e proporcionavam uma perspectiva menos verticalizada foram privilegiados pela personagem, enquanto médicos com posturas caracterizadas como sarcásticas e completamente fechados ao diálogo com a paciente foram trocados por profissionais dispostos a refletir junto com a personagem as melhores escolhas. Esse foi o caso da quimioterapia, para o qual Carol busca três opiniões biomédicas e acaba optando por não realizar o tratamento, após conhecer um teste de predisposição à recidiva criado pelo The National Health Service (NHS).

O recurso à biomedicina individualizada ou de precisão foi um dos fatores para a personagem optar pelo tratamento, entendendo a singularidade de cada caso, considerando assim a noção de predisposição como preponderante. Contudo, nesse campo das “susceptibilidades” (Rose, 2007) e dos rastreamentos genéticos, vemos uma tensão importante na HQ. A personagem leva em consideração as susceptibilidades para uma recidiva, o que a leva a decidir não realizar a quimioterapia; entretanto, decide não fazer o exame de detecção de mutações como BRCA1 e BRCA2, cujo rastreamento apontaria predisposição no desenvolvimento de tumores na região das mamas, e fora assim aconselhada pelos oncologistas de Carol, especialmente pela personagem ter apresentado nódulo antes dos 40 anos.

Há um debate importante sobre predisposições, susceptibilidades, ansiedades e bem-estar nessas questões. Ainda, a busca da personagem por informações, os conselhos recebidos por amigas e os achados na internet mostram lados diversos desses conhecimentos. Se algumas informações  buscadas por Carol e sua rede de apoio aumentavam a sua ansiedade – assim como a espera por resultados, por outro lado, foi a procura por outras fontes e formas de tratamentos que a ajudaram a questionar e a decidir pelos profissionais de saúde que a acompanhariam.

Finalmente, é indispensável ressaltar o aspecto didático e de apoio que essa HQ pode proporcionar. Essa obra, que se propõe a dialogar com as pessoas enfrentando o adoecimento, pode ter um papel importante também para todos que fazem parte das redes de apoio de alguém que está passando por essa experiência, assim como é uma forma de sensibilizar estudantes e profissionais da biomedicina que trabalham nesse tema da biomedicina e, mais especificamente, da oncologia.

Referências
ROSE, Nikolas. The politics of life itself: Biomedicine, power, and subjectivity in the twenty first century. Princeton, UK: Princeton University Press, 2007.
POTTER, Sharyn J.; MCKINLAY, John B. From a relationship to encounter: an examination of longitudinal and lateral dimensions in the doctor–patient relationship. Social Science &
Medicine, [s.l.], v. 61, Issue 2, 2005. ISSN 0277-9536.

Juliana P. L. Caruso é doutora em Antropologia Social pela École Pratique des Hautes Études (EPHE), mestre em Antropologia Social e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente realiza pesquisa de Pós-Doutorado na Universidade de São Paulo (USP) com pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, (FAPESP) n. 2019/02706-4. Ao longo de sua trajetória, vem se dedicando aos estudos das relações familiares, matrimoniais e de parentesco no Brasil. E-mail: julianacaruso@usp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4490-8374

Como referenciar esta resenha:
CARUSO, Juliana P. L. Resenha da obra “180º: minhas reviravoltas com o câncer de mama”. Ilha – Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 26, n. 2, e96239, p. 125-127, maio de 2024. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-8034.2024.e96239