A hora da História das crianças

23/03/2022

Resenha do livro A HORA DAS CRIANÇAS: NARRATIVAS RADIOFÔNICAS

Autores: Walter Benjamin, Aldo Medeiros – Tradutor.

Por Camila Rodrigues

Em 2015, a editora carioca NAU foi pioneira ao publicar em livro a tradução para o português de vinte e nove textos escritos e irradiados pelo filósofo germânico Walter Benjamin (1892-1940) em seu programa A hora das crianças, destinado aos alemãezinhos entre 1929 e 1932. Na orelha da obra, intitulada A Hora das crianças: narrativas radiofônicas de Walter Benjamin, a pesquisadora Rita Ribes Pereira lembra que parte do conjunto reunido no volume fora inicialmente traduzida para uso do Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea, da UERJ, e só depois se pensou na tradução completa dessa produção, a qual aqui temos acesso. Na vivaz tradução do músico e germanólogo Aldo Medeiros, a edição conseguiu preservar a agilidade e a comicidade daquelas performances orais, e esse peculiar material chega enfim ao conhecimento amplo dos historiadores brasileiros, mostrando como um dos mais importantes pensadores do século XX conceituou as crianças de forma até então incomum. Ao tomá-las como interlocutoras legítimas no diálogo sobre cultura e sociedade, marca-se uma ruptura importante a ser considerada pela historiografia da infância.

Como Walter Benjamin ficou conhecido por ter pensado possibilidades para os mas media já na época do seu advento, não soa de todo estranho ter acesso a um material produzido por ele para o rádio no final da década de 1920, quando esta tecnologia era muito recente na Alemanha. Porém, segundo a nota à edição alemã, escrita em 1985 por Rolf Tiedermann, o volume nos apresenta alguns trechos de correspondência de época, nos quais o flagramos questionando a importância desses trabalhos radiofônicos, apesar deles terem mantido sua estabilidade financeira por um tempo.

No livro temos narrativas autônomas, que de antemão possuem em comum apenas o fato de terem sido produzidas como base para as apresentações orais na performance direcionada às crianças, figuras que, em geral, pipocam nos textos benjaminianos, mas cuja presença nem sempre é destacada pelos críticos. Quando organizadas para a publicação no volume, elas compõem oito pequenos grupos, nos quais a maioria dos textos versa especialmente sobre algum tema, como se forjassem capítulos, tornando mais agradável sua leitura. Inaugurando o primeiro mote encontram-se dois textos, intitulados “O dialeto berlinense” e “O comércio de rua e as feiras na Berlim antiga e moderna”.

Neles, Benjamin propõe às crianças conversas sobre o modo de falar especifico do berlinense e a linguagem nas feiras de Berlim, destacando como a oralidade pode abrir caminho para a percepção humorística da vida. O radialista discorre sobre uma conhecida série de histórias curtas e engraçadas repetidas pelos berlinenses há várias décadas, sugerindo que aquelas anedotas registrariam melhor o que se passava pelas mentes dos berlinenses comuns que viveram o cotidiano da cidade, algo que, naquele início do século XX, não era assunto para a História. No segundo grupo temático encontramos cinco contribuições: “O teatro de marionetes em Berlim”, onde o radialista conta aos pequenos como foi que os bonecos deixaram de ser objeto de diversão para crianças para virar artigo da alta cultura de adultos. Em “A Berlim demoníaca”, a história contada é sobre como o escritor fantástico E. T. A. Hoffmann se transformou em um dos melhores “fisionomistas de Berlim” no século XIX.

Em “Um menino nas ruas de Berlim”, Benjamin confessa a profunda influência que recebeu da bela descrição da infância na autobiografia do já então desconhecido Ludwig Rellstab, que evocava alegremente seus dias de meninice. Para fechar o grupo, o radialista leva seus ouvintes para passear pelas lojas de brinquedos da cidade em dois textos. Em um deles, expressa a problemática em se falar diretamente com muitas crianças pelo rádio e, ao descrever uma de suas excursões pelas lojas de departamento berlinenses, interrompe repentinamente a narração. Pede, então, aos pequenos receptores que parem de ouvi-lo por um instante, porque ficou com receio de que pudesse receber muitas cartas de pais com perguntas assim: O senhor enlouqueceu ou o quê? O senhor não acha que já é suficiente que as crianças passem o dia choramingando, e agora o senhor vem colocar essas coisas na cabeça delas, contando de não sei quantos brinquedos, dos quais até agora elas graças a Deus não tinham ouvido falar, mas agora todas querem ter, e, além de tudo, de coisas que nem sequer existem mais! (BENJAMIN 2015, p. 65-66).

Ao se imaginar como mediador no choque cultural entre as crianças e os adultos, Benjamin considera que não possuía uma solução que aproximasse ambas as partes, mas argumenta com os pequeninos que, quando alguém entende de alguma coisa – como acontecia com ele e os brinquedos –, tanto maior será sua alegria em dividir este saber. Era isso que eles deveriam tentar explicar a seus pais, caso eles também estivessem ouvindo ocultamente o programa infantil e rejeitando seu conteúdo.

No terceiro grupo, temos quatro textos sobre economia e produção industrial. Em “Borsing”, ele aborda uma conhecida firma berlinense na época; em “Casernas de aluguel”, fala sobre as novas formas de moradia urbana que surgiam em Berlim no início do século passado; e em “Visita à fábrica de latão” se propõe a descrever, internamente, o funcionamento de uma fábrica, para encanto das crianças. Esses programas tratam de assuntos importantes para a Alemanha do início do século XX, mas eram temas impensados para conversas com crianças. O fato de eles comporem o mote do programa benjaminiano atesta que A Hora das Crianças não se furtava em assumir os pequenos como colocutores para tratar de assuntos vividos na atualidade. Em meio a esse grupo, porém, encontra-se o programa dedicado a “Theodor Hosemann”, que é um caso diferenciado.

Ele fala sobre um ilustrador que o autor-radialista supõe ser um nome desconhecido de seus ouvintes, mas que certamente seus pais o conheceram quando crianças, pois: As publicações para jovens que Hosemann ilustrava naquela época adoravam impressionar as crianças com histórias comoventes, considerando que assim garantiriam seu bom comportamento. Talvez seja aí que tenham se enganado. As crianças querem evidentemente conhecer tudo. E, se os adultos só mostram a elas o lado bem comportado e correto da vida, elas logo vão querer conhecer o outro lado por si mesmas (BENJAMIN 2015, p. 99).

Nesse trecho, o radialista demonstra aos pequenos que possui certo conhecimento sobre seus anseios, diferentemente da maioria dos adultos. Abrindo o quarto grupo temático do livro, com cinco textos sobre perseguidos e excluídos, começamos com “Os ‘Passeios pelo Marco de Branderbugo’ de Theodor Fontane”,no qual Benjamin conta algo que, possivelmente, seus pequenos destinatários não sabiam: que os jovens do movimento Wandervögel, cansados da vida urbana, passaram a fazer caminhadas por Branderbugo e isso resultou em uma extensa série de anedotas recolhidas por Fontane no século XIX, que compõem versões peculiares da história do local. Em “Processos contra bruxas”, o radialista alerta que não tratará das malvadas personagens de contos de fadas, mas de feiticeiras pagãs que, ao longo dos séculos, se transformaram em vilãs perseguidas na História. Em “Bandoleiros na antiga Alemanha”, Benjamin trata de um grupo de pessoas fora da lei, que foram responsáveis pela composição de certo desenho cultural berlinense com seus brados, códigos de ética, língua, entre outras peculiaridades.

Em “Os ciganos”, fala desse grupo que não só possui cultura própria como também se orgulha muito dela e se esmera em preservá-la, o que era duramente reprimido nas zonas urbanas até os primeiros anos do século XX. No último programa do bloco, “A Bastilha, antiga prisão nacional da França”, o radialista fala de uma das mais conhecidas prisões da História, para onde não eram levados apenas criminosos, mas sim todos os que eram malvistos pelo rei. Era, portanto, um instrumento de poder, e sua tomada em julho de 1789 representa uma forte reação a esse poderio.

Na quinta parte do livro, o narrador conta três histórias sobre figuras ilustres que se tornaram personagens de narrativas de mistério mundialmente conhecidas: a breve e emocionante biografia do matuto “Casper Hauser”, que acabou sendo inexplicavelmente assassinado; em “Doutor Fausto”, narra a assustadora história do homem faminto por conhecimento e que virou personagem literário de Goethe; e em “Caglioto” explora a história do famoso farsante esotérico que teria vivido na Europa do século XVIII.

No sexto grupo, Benjamin apresenta uma tríade de textos sobre malandros e impostores. “As fraudes em filatelia” trata de falcatruas com selos, que eram frequentemente falsificados no início do século XX e que poderiam muito bem ser objeto de interesse das crianças que ouviam o programa, pois naquelas estampilhas elas poderiam encontrar paisagens, ilustrações históricas, símbolos para compor sua sabedoria infantil. No próximo escrito, narra uma divertida viagem a “Nápoles”, destacando, entre outras coisas, a forte presença da máfia italiana Camorra.

Em “Os bootleggers”, ao abordar a rede de contrabando de bebidas nos Estados Unidos, o autor e locutor coloca aos ouvintes um questionamento interessante: Por que devemos contar estas coisas às crianças? Devemos falar a elas sobre impostores e criminosos que desrespeitaram as leis para fazerem fortuna em dólares e, pior, assim conseguem alcançar seu objetivo? Sim, esta é uma questão que deve ser colocada e eu ficaria com a consciência pesada se simplesmente chegasse aqui e ficasse contando histórias com tiros de pistola disparados para todos os lados. Eu preciso dizer algumas palavras sobre as leis importantes e os grandes propósitos que constituem o pano de fundo das histórias em que os contrabandistas de álcool são os heróis (BENJAMIN 2015, p. 209). Ao inserir a si mesmo na própria inquirição exposta à meninada, assume claramente seu desejo de introduzir a criança no diálogo e também na reflexão sobre as possibilidades e limites de suas experiências radiofônicas.

A sétima parte do volume traz cinco textos sobre catástrofes memoráveis, o que é curioso em se tratando de um programa para crianças. “A destruição de Herculano e Pompéia” narra histórias de desgraças conhecidas desde a Antiguidade. “O incêndio do Teatro de Cantão” fala de uma fatalidade acontecida na China do século XVIII, com o narrador discorrendo sobre a então grandiosa dramaturgia chinesa, que no século XX já se encontrava esvaziada de significados. Conforme nota da edição, a escolha da China como tema deveu-se ao início do conflito entre os comunistas de Mao Tsé-Tung e os nacionalistas do general Chiang Kai-shek em 1927, apontando a disposição do programa em inserir a meninada nos assuntos da atualidade. Em “O desastre ferroviário da ponte do Rio Tay”, ocorrido no Canadá em 1927, menciona-se a existência de um “programa da emissora” impresso, para ser folheado pelas crianças, no qual elas encontrariam imagens do acidente publicadas na época.

Em “A enchente do rio Mississipi em 1927”,o radialista trata novamente de acontecimentos nos Estados Unidos e promete contar em um programa futuro, que não sabemos se ocorreu ou não, a história da Ku-Klux-Klan, que teria sido a maior e mais perigosa sociedade secreta norte americana: “comparada a ela, as façanhas de todos os contrabandistas de whisky e todas as gangues criminosas de Chicago parecem brincadeira de roda” (BENJAMIN 2015, p. 265). Para fechar o grupo, temos “O terremoto de Lisboa”. Benjamin conta a história desta que foi uma das maiores catástrofes da Europa e também expõe claramente sua metodologia como radialista, explicando-a através de uma analogia bem compreensível a uma criança no começo do século XX: Vocês alguma vez já tiveram que ficar esperando na farmácia, vendo o farmacêutico preparar uma receita? Ele pesa as substâncias e os pozinhos grama por grama com a ajuda de pequeninos pesos de metal, até chegar à dose certa para fazer o medicamento. Pois da mesma forma que o farmacêutico, assim faço eu aqui quando vou contar alguma coisa para vocês no rádio. Os meus pesos são os minutos, e eu preciso medir exatamente o quanto disso e o quanto daquilo vou usar para chegar à mistura correta (BENJAMIN 2015, p. 235).

Ao compartilhar com as crianças os seus cuidados no planejamento das peças radiofônicas, o radialista as faz sentir que são singulares e que também fazem parte da produção daquele programa de rádio, feito especialmente para elas. No derradeiro grupo temático encontramos dois programas ligados diretamente aos interesses das crianças: “Histórias reais sobre cães”, lembrando, inclusive, que já existia um dicionário de cães famosos, narrando suas lendárias anedotas, sublinhando sempre a proximidade entre a garotada e os animais. Já em “Um dia maluco”, temos uma atração em forma de jogo de perguntas engraçadas na primeira parte e suas respostas curiosas a serem reveladas no próximo programa. Adaptar um tradicional jogo oral infantil ao rádio era uma forma de inserir os pequenos na nova tecnologia da época, mas também de aproveitar um conjunto de saberes e procedimentos específicos da criança para fazê-las participar a partir de coisas de seu interesse.

Muito além de ser apenas uma leitura agradável e divertida, a disponibilização deste material no Brasil é importante, pois apresenta traços mais fortes do grande interesse de Walter Benjamin por assuntos referentes às crianças. Mostra, ainda, que, ao enxergar os pequenos como pares legítimos no diálogo histórico-social, juntamente com eles ele pôde refletir sobre os assuntos de destaque em seu ideário filosófico, como arte, política, cultura, memória, história. Afora a importância teórica para o historiador, essa rica publicação pode ser entendida, simultaneamente, como narrativa histórica e como fonte de pesquisa, permitindo que se sonde os fluxos de um novo ideário em relação à criança, que passava a ser vista como interlocutora legítima. É possível assim envolver-se na escrita de uma então esboçada nova História da Criança a partir do século XX.