Liberdade de expressão x discurso de ódio: limites não são tão tênues como parecem

07/03/2022

Parece crescente a tendência de grupos e indivíduos praticarem discursos de ódio sob a alegação do direito à liberdade de expressão. Ideias que há pouco tempo imaginávamos enterradas junto aos destroços da Segunda Guerra Mundial, vêm renascendo como ervas daninhas nos jardins das redes sociais – ou como ovinhos de serpentes que se proliferam no mundo selvagem da internet. Cada vez mais nos deparamos com essas ideias abomináveis também em canais oficiais de informação e na grande mídia, veículos com maior poder e alcance, em que a responsabilidade na expressão de opiniões precisa ser levada muito a sério. 

Este foi o caso de um podcast de audiência nacional que trouxe de volta essa polêmica recentemente: o Flow, espaço legitimado de debate de ideias que há poucas semanas foi utilizado para a propagação de discursos de ódio pelo apresentador do programa, o youtuber Bruno Ayub, conhecido como Monark, e pelo deputado federal Kim Kataguiri (Podemos-SP), convidado para participar de um episódio.

Em resumo, o desafio que se apresenta é: como um dos princípios fundamentais de uma democracia – a liberdade de expressão – vem sendo manipulado por forças políticas que têm, em última instância, o objetivo de destruir a democracia?

É evidente que ideologias de direita que alimentam os espectros nazifascistas jamais deixaram de circular no mundo. A novidade agora é que suas vozes saíram da obscuridade da Dark Web (e de pequenas células clandestinas) para se infiltrar, talvez de maneira mais sutil e sob um véu de legitimidade, nos canais digitais de notícias. Os haters têm visto suas ideias – racistas, misóginas, xenófobas e homotransfóbicas – serem propagadas em canais abertos e por pessoas “de bem” que, supostamente, não estão fazendo mais do que exercer seu direito à liberdade de expressão.

Em consequência, passando da palavra à ação, a violência explode diariamente. Entre outros tantos e tristes exemplos recentes, a legitimação de falas e ações ofensivas a certos segmentos da população – às pessoas negras, indígenas, membros da comunidade LGBTQIA+, mulheres, refugiados, judeus, entre outras –, que invariavelmente culminam em assassinatos e outros atos de violência, tem usado como argumento o direito à liberdade de expressão, interpretando-o de modo distorcido como uma sobreposição de ideias individuais à dignidade e integridade do outro. 

É urgente a necessidade de enfrentamento desse problema. As grandes redes sociais vêm sendo pressionadas a reconhecer e lidar com o perigo representado por seus próprios algoritmos. Guardadas as diferenças das mediações tecnológicas atuais, o dilema que se apresenta é basicamente o mesmo que há quase 80 anos é conhecido como o Paradoxo da Tolerância, assim definido pelo grande filósofo da ciência Karl Popper: “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada, mesmo para aqueles que são intolerantes, e se não estamos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque dos intolerantes, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.”* 

Saiba mais sobre o assunto prosseguindo com a leitura.

As deploráveis declarações de Monark e Kataguiri

O Flow é um dos podcasts mais populares no Brasil, com mais de 3,7 milhões de inscritos apenas no YouTube. Além disso, liderou no ano de 2021 o ranking dos mais ouvidos na plataforma de streaming Deezer. Porém, o programa tornou- se o epicentro de um grande debate nacional desde a edição apresentada no dia 07 de fevereiro. 

Na ocasião, o apresentador do podcast, Monark, afirmou que “deveria haver um partido nazista reconhecido pela lei”, e acrescentou: “Se um cara quisesse ser antijudeu, eu acho que ele tinha o direito de ser”.

Após as declarações, diversos patrocinadores encerraram o contrato com a Flow, e várias personalidades entrevistadas previamente no programa solicitaram que as gravações em que figuravam fossem removidas. Monark foi desligado da empresa, na qual era não apenas podcaster, como também sócio.

Já Kim Kataguiri afirmou, no mesmo programa, em resposta a um questionamento da deputada federal (PSB-SP) Tabata Amaral, que “a Alemanha errou ao criminalizar o nazismo”. Um pedido de cassação de mandato do deputado está em trâmite. Além disso, a Procuradoria Geral da República instaurou uma apuração para verificar o crime de apologia ao nazismo.

O que é a liberdade de expressão?

É importante, no caso de um conceito tão amplamente empregado e discutido nos dias de hoje, que antes de mais nada se defina seu significado.

Liberdade de expressão é o direito de qualquer indivíduo de manifestar ideias, pensamentos e opiniões pessoais livremente, sem temor de censura ou retaliação, seja ele membro dos três poderes ou cidadão comum. No entanto, a ética e o respeito ao outro devem, é claro, orientar e balizar o uso desse direito. Apologias ao nazismo ou discursos que enaltecem práticas de ódio são crimes e, portanto, não podem ser justificados com a muleta da liberdade individual. O item referente ao direito à liberdade de expressão, manifestação e reunião que consta na Constituição Federal não contempla atos violentos e apologias ao preconceito, à aversão e ao ódio contra determinados indivíduos ou grupos. 

Para além da história…

A linha que separa a liberdade de expressão dos discursos de ódio pode parecer tênue, mas, na realidade, quase sempre pode ser nitidamente divisada. A liberdade de expressão é assegurada na lei e regulada pelo respeito aos direitos humanos, ao passo que as práticas e enunciações odiosas estão no universo do crime, mesmo que trajado de direito. Diante das fronteiras ainda pouco nítidas entre as ações oficiais do atual governo brasileiro e as práticas escusas das milícias bolsonaristas, representadas pelo “gabinete do ódio”, não podemos mais fechar os olhos para uma violência que cada vez mais encontra brechas para vir à tona, seja nas artimanhas da linguagem, nas distorções das informações e interpretações dos fatos, ou na propagação das fake news.

No dia seguinte à defesa da criação de um partido nazista por parte de Monark, o Museu do Holocausto de Curitiba o convidou para uma visita. “O nazismo foi muito além de pessoas exercendo, em suas palavras, o ‘direito de serem idiotas’”, escreveu o museu em seu perfil no Twitter, dirigindo-se ao youtuber. 

A visita aconteceu duas semanas depois, no dia 22 de fevereiro. De acordo com o coordenador do museu, Carlos Reiss, “ele participou de uma visita mediada para adultos, na qual contamos histórias e enfatizamos questões ligadas ao nazismo e às etapas do genocídio que levaram ao extermínio de milhões de pessoas. Sempre esperamos que a visita seja proveitosa e que ajude no crescimento de todos como seres humanos. Com ele, não foi diferente”.

A NAU Editora defende que o conhecimento – seja por meio de livros, documentários, museus, grupos de estudos ou outros – é um agente transformador da vida individual e coletiva. Quando alicerçado na experiência histórica e na pesquisa científica, o conhecimento também é uma produção social imprescindível para que movimentos extremistas não se reproduzam e que discursos de ódio sejam erradicados. 

*The Open Society And Its Enemies (1945); A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (1974).

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